Tag Archives: bjork

To Be Safe Again With You

31 jan

Ao pé da montanha o vento não era tão frio, e o solo menos espinhoso e dentilhado de pedras escorregadias. Por ali ainda podiam se ver pessoas e animais passando por entre as trilhas, diferente da subida ao topo, onde as rochas espinhosas ameaçavam quaisquer um que as ousasse desafiar, vencer a escalada e encarar o mundo do topo. Não era possível fixar qualquer equipamento de segurança para facilitar a escalada, o lodo e musgo – acumulados a séculos – impediam a fixação de qualquer coisa, deslizavam por entre as mãos dos desavisados e para eles não reservava destino doce. Ali era a nossa morada, ao pé desta Montanha dos Tormentos, mas que guardava tantos segredos em seus cascalhos e pedregulhos, desfiladeiros que escondiam vidas inteiras, gritos e choros infindáveis. Ali, os poucos que possuíam – não a força – mas a loucura, a necessidade, a habilidade, o ímpeto… Quem saberia dizer? Mas haviam esses, que como eu se aventuravam por entre os rochedos que se banhavam de sangue e lágrimas.

A rotina da procissão jamais se quebrava. Você nunca soube, e jamais quis que soubesse. Mas todos os dias, antes de qualquer luz senão a das estrelas inflamar o céu da noite, eu me levantaria, poria aqueles trajes pesados de lã – proteção contra os ventos gelados que cortavam a pele e feriam a os lábios – além dos sapatos, sabe-se lá feitos do quê, talvez de coragem para enfrentar aqueles caminhos turvos sozinho. A lanterna e o óleo em mãos. O medo então me invadia, e se dessa vez eu não conseguisse, se por descuido tropeçasse num daqueles vãos que desenhavam a colina? Então uma última visão de você, impassível em seu sono, e então eu sei que vale a pena, qualquer coisa se torna pequena.

Lá fora o frio e a neblina sempre andam de mãos dadas comigo, sem se importar com a minha vontade, e me acompanham até o topo, mais fortes e presentes a cada passo. Todas essas pontas rochosas e vales dissimulantes já são velhos conhecidos, e, apesar de difícil a caminhada, e dos cortes e calos que presenteiam, já sei por onde ir e com a vela à minha frente sigo, sempre acima, a escadaria aos céus, se pudesse assim chamar o ápice deste elevado. Mesmo após tanto tempo nesta peregrinação diária não me salvo de um ocasional que me custaria a vida, não fosse a minha pele já espessa pelo atrito com a superfície áspera, e minhas mãos fortes por segurem o fio da vida em suas pontas, tudo sendo apostado nas fibras dos músculos. Não é incomum me faltar o fôlego, e então vir o receio de não conseguir fazer à tempo, e então, como eu voltaria antes do amanhecer, como desta forma? Não, jamais.

Apesar de excruciante, o caminho também serve como um meio de exorcizar todo esse peso, toda a carga que eu guardo e preciso liberar. É dito em certas culturas que o sangue contém as impurezas da alma, então para se purificar e retirar toda a carga negativa seria necessário sangrar, e deixar fluir tudo aquilo que envenena e corrói. Não sei se é verdade, mas talvez funcione comigo durante esta jornada, talvez por isso eu seja sempre capaz de chegar ao topo. Todos esses arranhões e machucados, as feridas abertas, por fim me liberam de parte do fardo que carrego me tornam leve para subir cada vez mais, me dão força para fazer o que é necessário, aquilo que me mantém vivo, que me deixa perto de você, que me impede de te perder, pra sempre.

É no topo, finalmente, que eu termino o meu dever. A parte que mais dói, porém a mais importante. Lá onde eu olho dentro de mim, como quem retira objetos de uma bolsa de entulhos vou atirando tudo o que há dentro na fenda. A cada peça que cai eu observo atentamente a queda, como vai se estilhaçando ao bater contra as pedras, a aparência horrível, irreconhecível. E então o som. Ela atinge o fundo, e é esmagada pela força da gravidade e por seu próprio peso. É assim que me livro de tudo, todos os dias. E eu penso, sempre, como seria se meu corpo um dia caísse desse penhasco e fosse de encontro as rochas, deformando após cada choque, e por fim o barulho final, aquele último grito de vida que imediatamente se esvairá. Meu corpo ali, dilacerado ao fundo deste fosso, junto de tudo aquilo que me pertencia, que me prendia, todas as extensões de mim que jamais conseguiria carregar, que não permitiriam os nossos dias juntos. Mas ao final estou salvo, e passo por tudo isso antes que você desperte para me sentir feliz, leve, pronto para te receber por inteiro, e estar seguro, mais uma vez, com você.